Brasileiro pisa pela última vez na Antártida após 4 décadas de missões polares

Dia 31 de janeiro de 2025, 8h30 da manhã, no horário de Brasília. Esta é a última entrada no diário das expedições polares de Jefferson Simões. E o encerramento veio em grande estilo, com uma longa circum-navegação da Antártida. “Dizem que quem vem à Antártida uma vez sempre quer voltar. Isso é verdade.”

O pesquisador polar, porém, parece satisfeito com as 29 visitas às regiões polares do planeta —a primeira pisada polar foi em 1985 no Ártico e a estreia na Antártida viria cinco anos depois. Ele nem mesmo planejava estar na Antártida nesse momento, mas aproveitou a porta aberta para a chance única de uma circum-navegação. “Tu voltas por causa da paisagem.”

Aos 66 anos, porém, se vê com uma nova missão: “Com essa idade você tem que ser mentor. Tem que passar o bastão para a nova geração”.

Simões diz que três países do Brics —especificamente Rússia, Índia e China— possuem institutos nacionais de pesquisa polar, enquanto o Brasil só tem o Centro Polar e Climático, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), do qual ele faz parte. Aponta ainda o baixo investimento em pesquisa antártica, em comparação a outros países do bloco.

De toda forma, a última missão de Simões pode ajudar na compreensão da importante instabilidade dinâmica de geleiras de parte da Antártida. Em relação a isso, o pesquisador menciona a geleira Thwaites e explica, nesta última reportagem da série Diário da Antártida, por que essa massa gelada é às vezes chamada de geleira do fim do mundo.

Dizem que quem vem à Antártida uma vez sempre quer voltar. Isso é verdade. Mesmo eu que já estou indo para a minha 29ª expedição nas duas regiões polares. Tu voltas por causa da paisagem, para ir a alguns lugares aos quais ninguém foi.

AdChoices

ADVERTISING

Ir à Antártida é quase como se ir no outro planeta. Quando você está no interior do continente, principalmente, onde em todo o teu horizonte não tem ninguém. Minhas missões, muitas vezes, são a 500 km da estação mais próxima, a 600 km. No interior da Antártida é um isolamento total. Você tem condições diferentes do Sol, que às vezes faz miragens, faz halos.

E, se você está na costa, é claro, tem uma fauna deslumbrante. Todos os dias, nessa missão aqui, o pessoal vê toda espécie de pinguins, baleias, aves. Eu gosto muito do trabalho de campo. É o contato com a natureza, é o desafio. Às vezes tu estás passando frio, às vezes tu estás molhado. Mas tu estás sempre nesse ambiente extremamente bom, com amigos, colegas trabalhando em cooperação, isso tudo ajuda. Você está no limite da sobrevivência muitas vezes.

Isso tudo vai fazer falta. Mas tem que seguir o caminho. Está na hora da gurizada —de 40 anos— pegar adiante e fazer esses trabalhos de campo, liderar esses trabalhos.

Dificilmente tu visualizas [alguma mudança] a olho nu. Mas quando você chega, por exemplo, à Ilha Rei Jorge —agora nós passamos alguns dias lá, e também estive nela nos anos 1990—, eu olho para as geleiras e elas já recuaram. Temos uma geleira que monitoramos há décadas e ela recuou mais de mil metros nos últimos 40 anos, 2.000 metros nos últimos 60. Essas coisas vemos a olho nu.

O que a gente chama linha de neve, aquela linha na qual a neve sobrevive no final do verão, está cada vez mais alta. Tem mais gramíneas, os musgos estão se espalhando mais, mas isso é na periferia da Antártida.

Para o leigo, muitas vezes, é contraditório: na periferia da Antártida está ocorrendo rápido descongelamento, perda de massa, contribuindo já para o aumento do nível do mar. Mas, ao mesmo tempo está aumentando a neve que cai no interior da Antártida, porque o mar está mais aquecido e mais neve é levada para o interior da Antártida. É a natureza, né? Não é linear a vida. Acredite ou não, no planeta Terra a gente tem gelo quente, que é o gelo ameno, temperatura entre -2°C e 0°C, e temos locais da Antártida em que o gelo está a -55°C —não espere que o clima de Manaus e Porto Alegre seja o mesmo. É a mesma coisa na Antártida.

Nós temos uma palavra técnica para isso [derretimento na periferia e mais neve no centro]: o balanço de massa do manto de gelo antártico. Esse balanço de massa é igual ao que está caindo menos o que está derretendo. E o que está derretendo está vencendo.

A Antártida vai começar a responder mais rapidamente agora ao aquecimento, nos próximos dez, 15 anos. Por enquanto, a contribuição do aumento do nível do mar vem da Groenlândia e das geleiras não polares. Até agora o que estamos observando é um derretimento de cerca de 2% a 3% do gelo do planeta. É de onde sai aquele cenário de um aumento de entre 40 centímetros até 1,20 m [do nível do mar] até 2100.

Você já deve ter ouvido sobre a geleira Thwaites, a geleira do fim do mundo. Existe instabilidade dinâmica de algumas geleiras, que descarrega o gelo do continente para dentro do oceano. Você transferiria uma massa enorme de gelo. Isso poderia levar a um aumento catastrófico do nível médio do mar. Poderia, em um período de 200 a 300 anos, implicar aumento do nível do mar de 5 m a 7 m.

Isso hoje é uma das áreas de mais interesse dos programas antárticos. Nós temos que responder a essa questão. Eu, como glaciólogo, tenho que, é minha obrigação, inclusive, não só científica, mas moral, de tentar melhorar o nosso conhecimento. Nós pegamos dados na frente dessas geleiras. Medimos, tiramos amostras de neve e gelo de algumas dessas geleiras, foram feitos levantamentos oceanográficos à frente dessas geleiras, amostras de sedimentos, de fundo, de água, de diferentes profundidades, e, ao mesmo tempo, tínhamos um levantamento geofísico aéreo, levantando qual é a posição hoje da linha de flutuação dessas geleiras —mais críticas, que têm o potencial de fluir mais rapidamente para dentro do oceano.

Diário da Antártida

Série apresenta bastidores, desafios e achados da expedição que busca completar a circum-navegação do continente

Expedição à Antártida corre para aproveitar janela entre ciclones e evita falar de política

Glaciólogo Jefferson Simões conta sobre o início dos trabalhos científicos no quebra-gelo russo

Cientista busca ciclones na Antártida após quase 15 anos de espera por expedição

Camila Carpenedo conta como balões atmosféricos podem ajudar na compreensão da crise climática

Agrônomo cava solo da Antártida para ‘plantar’ sondas climáticas

Marcio Francelino, da Universidade Federal de Viçosa, está em sua 17ª expedição ao continente

Bióloga vira guia para fazer da Antártida seu lar e entender o que é a vida

Emanuele Kuhn decidiu passar o maior tempo possível no gelo e atuar com educação ambiental

Em conexão Antártida-Nordeste, biólogo pesca zooplânctons para investigar cadeia alimentar

Pedro Melo, da Universidade Federal de Pernambuco, tenta entender e prever possíveis impactos da crise climática

Presos em tempestade, cientistas celebram Natal em pequena barraca no gelo da Antártida

Filipe Lindau e colegas evitavam ao máximo sair do abrigo devido ao clima extremo e ao desconforto

Luva gera correria na Antártida, e cientistas se vigiam para deixar só pegadas

Venisse Schossler, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é a única mulher na coordenação da circum-navegação

Em primeira missão à Antártida, cientista russo se sente como criança em loja de doces

Pesquisador Nikita Kusse-Tiuz realiza sonho de ver foca e diz que quase não há dias sem pinguim

Em expedição à Antártida, inglês une cientistas indianos de diferentes origens

Shramik Patil, chefe da delegação do país, diz que, às vezes, também recorrem ao Google Tradutor

Alguns chineses e indianos vão sair daqui e ficar mais 45 dias em outra missão. Um dos nossos colegas, o Renato Romano, vai continuar mais 40 dias na Antártida, trabalhando na estação [brasileira Comandante Ferraz]. Quase toda a carga dos brasileiros deixamos lá; fica mais fácil sendo transportada pelo navio da marinha.

Eu entro em férias. Estou prometendo que essa foi a minha última missão.

Uma das coisas que posso dizer com certeza que nos impressionou [nesta missão] foi conseguir observar um daqueles rios atmosféricos. A gente estava olhando na imagem de satélite, um daqueles rios atmosféricos que vem lá da Amazônia e chega à Antártida. Vamos ver se, nessas amostras que coletamos de neve, vai ter um aumento de carbono negro —proveniente da queima de floresta. A circulação é interessante: sai da Amazônia, a massa de ar vai contra os Andes, desce até a latitude do Rio Grande do Sul, e aí vem vindo até chegar à Antártida. Com balões atmosféricos, você vê variações da umidade. Tu vais juntando, tu vais contando uma história, né?

As regiões polares são partes indissociáveis, conjuntas, unidas por todo o sistema climático. O que ocorre na Antártida afeta o cotidiano brasileiro. O sistema é casado. E as regiões polares estão se tornando cada vez mais importantes. Veja o Trump. As mudanças do clima já modificaram a tal ponto essas regiões que estão trazendo, consequentemente, mudanças políticas, de estratégias militares, de presença de diferentes países, aumento do interesse pelo potencial dessas regiões. O Brasil tem que prestar atenção nisso.

A comunidade científica gostaria de ter pelo menos uma instituição de pesquisa civil acadêmica, como vários países têm. O investimento tem sido muito restrito. A América Latina, como um todo, é uma montanha-russa: às vezes tem dinheiro, às vezes não tem nada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.